Casa Mundo News #24
Mundo distópico: Bebê Reborn, Trad Wife, Geração Sanduíche e o Rebranding da fé
Vivemos numa distopia disfarçada de estilo de vida
Nessa edição, reunimos quatro sintomas do nosso tempo. Em comum, todos escancaram a tentativa desesperada de criar soluções rápidas para vazios cada vez mais profundos. Bonecos que substituem vínculos, fantasias de submissão vendidas como liberdade, filhos adoecidos por cuidar de pais esquecidos, e a fé convertida em espetáculo digital.
É como se estivéssemos decorando a distopia para que ela pareça confortável. Mas basta olhar de perto para perceber que esses novos estilos de vida são, na verdade, armadilhas antigas — agora com filtro bonito, trilha sonora no reels e discurso pronto para engajar.
Entre puritanismos performáticos, padrões sexistas re-embalados e afetos em crise, essa edição é um convite à lucidez. Porque tem algo muito errado sendo vendido como certo — e talvez esteja na hora de parar de compartilhar e começar a desconfiar.
Que surto é esse de bebê reborn?
Bonecas bebê reborn viralizam e geram polêmicas nas redes sociais.
Nos últimos dias, os bebês reborn — bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos — ganharam atenção nas redes sociais, após celebridades como Britney Spears, Padre Fábio de Melo e Gracyanne Barbosa compartilharem fotos e vídeos com os seus. O que chama atenção não é só a aparência detalhada das bonecas, mas o modo como são tratadas: como filhos reais. Feitos à mão, esses bonecos podem custar de R$ 200 a mais de R$ 8.000, dependendo do nível de realismo.
Não à toa, essa cena viral acontece em um contexto de solidão crescente. Segundo uma pesquisa global do Instituto Gallup em parceria com a Meta, 24% da população mundial se declara muito ou razoavelmente solitária. No Brasil, esse índice é de 15%, mas salta para 38% quando o critério é o sentimento de pouca conexão com os outros. Os bebês reborn, nesse cenário, não são apenas objetos: tornam-se companhia, resposta simbólica ao vazio relacional.
Não se trata apenas de afeto deslocado para bonecos. Estamos diante de um sintoma de época: relações cada vez mais simuladas, laços mediados por telas, e uma urgência por controle que transforma o outro em coisa. Os bebês reborn não choram, não frustram, não abandonam. É uma parentalidade sem risco — e, por isso mesmo, sem troca.
Quando adultos recorrem a bonecos para simular cuidado, talvez não seja mais possível falar de “brincadeira”. O culto ao bebê reborn pode ser menos sobre nostalgia e mais sobre um desespero silencioso por conexão em um mundo que desaprendeu a cuidar.
A volta da esposa idealizada
A imagem da mulher “tradwife” e o mal-estar da modernidade.
A imagem da “mulher tradwife” — devotada ao lar, feminina, elegante — voltou a ganhar força nas redes, impulsionada por influenciadoras como Hannah Neeleman, do perfil Ballerina Farm. Com vestidos florais, filhos alinhados e pães saindo do forno, essas cenas estéticas viralizam como um novo ideal de vida simples, natural e plena.
Esse imaginário encontra solo fértil em um cenário de exaustão. Apesar dos avanços, as desigualdades permanecem: no Brasil, mulheres compõem 53,3% da força de trabalho, mas seguem ganhando menos e dedicando quase o dobro do tempo aos cuidados domésticos (21,3h semanais, segundo IBGE). Sob a promessa de autonomia, muitas enfrentam jornadas múltiplas, precariedade emocional e solidão.
O apelo da mulher tradwife revela uma tensão entre liberdade e sobrecarga. Ao romantizar papéis definidos do passado, o movimento oferece conforto simbólico diante de um presente fluido, competitivo e desordenado. A escolha pela vida doméstica surge, assim, como tentativa de recuperar pertencimento e valor em um mundo que cobra tudo e devolve pouco.
Esse retorno não é ingênuo nem neutro. É uma resposta cultural — e, talvez, uma forma de crítica silenciosa — a um tempo que prometeu liberdade, mas entregou cansaço.
A realidade da Geração Sanduíche
Entre filhos e pais, o peso invisível das responsabilidades.
A "geração sanduíche" está se tornando cada vez mais uma realidade no Brasil. Este termo se refere a uma parcela crescente da população — especialmente mulheres entre 35 e 49 anos — que se vê obrigada a equilibrar as responsabilidades de cuidar dos filhos, muitas vezes ainda dependentes, e dos pais idosos, em uma fase de vida em que a demanda por apoio aumentou consideravelmente.
Dados do IBGE apontam que quase 1 milhão de brasileiros vivenciam essa realidade atualmente. E, para as mulheres, o impacto é ainda mais acentuado: elas representam 60% da "geração sanduíche", muitas vezes saindo do mercado de trabalho ou lidando com jornadas informais e salários mais baixos. Um estudo do IBGE revelou que, dessas mulheres, 33,6% estão fora da força de trabalho, e aquelas que continuam trabalhando enfrentam uma desigualdade salarial significativa, com rendimentos 34,4% inferiores aos dos homens.
Esse fenômeno escancara uma tensão cultural importante: quando o envelhecimento da população, a maternidade tardia e a desigualdade de gênero se cruzam, criando uma geração sobrecarregada e, muitas vezes, invisível.
Deus já é filho do algoritmo
A religião e seu rebranding. A fé virou palco — e o púlpito, ring light.
Outro movimento que ganhou atenção recentemente foi o caso dos Legendários e o “pastor mirim” Miguel Oliveira, gerando polêmica e trazendo à tona uma discussão sobre a profissionalização da fé. O que estamos vendo não é um avivamento espiritual, mas a transformação da religião em mais um produto do mercado, com cultos que mais parecem eventos VIP, pastores com estética de startup e práticas religiosas embaladas em narrativas de autoajuda.
O Legendários, por exemplo, oferece vivências espirituais exclusivas que chegam a custar até R$ 80.000 para quem deseja subir à montanha e participar das experiências imersivas. Isso expõe uma tendência crescente dentro das igrejas, que passaram a usar estratégias de marketing digital para atrair e engajar fiéis. O uso de branding, tráfego pago e até jornadas de engajamento tem sido cada vez mais comum para criar uma experiência religiosa que se assemelha a um produto ou serviço.
Esse movimento não é limitado a líderes como o “pastor mirim”, que cobra valores altos por pregações e promessas de cura, mas reflete um cenário mais amplo de como a religião tem se adaptado à lógica capitalista e digital. Com cultos que se transformam em espetáculos e a fé sendo tratada como uma experiência de consumo, o mercado religioso se distancia da espiritualidade em sua forma mais autêntica.
A Casa Mundo é uma casa de pesquisa e inteligência de mercado com mais de 25 anos de experiência ajudando marcas a tomar decisões embasadas através da pesquisa qualitativa.
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